quarta-feira, dezembro 27, 2006

Uma questão de oportunidade

A baía formada pela foz do rio Palmital e a ilha de São Francisco do Sul é chamada Baía da Babitonga. Babitonga é palavra indígena que significa morcego. Este é um lugar muito próspero para se viver no verão. Principalmente para quem vive da pesca. Na América latina esta é a maior área de mangue ao sul do equador, tornando-a um grande berçário e abrigo para várias espécies de peixes. Suas águas tranqüilas garantem a segurança daqueles que lançam suas redes em busca do seu sustento. Porém quando se aproxima o inverno e os peixes desaparecem as coisas mudam de figura. E o que se vê é uma grande fome acompanhada da depressão e melancolia que caracterizam o inverno nessa região.
Este ano não tinha sido dos melhores para Jango. O pouco que conseguira pescando foi divido igualmente entre para pagar dividas antigas e tomar uns tragos no mercado municipal. A carestia apertava e o crédito minguava dia a dia. A cozinha ficando cada vez mais vazia. Para quem tem cinco filhos essa não é uma situação tranqüilizadora. Mas quando a família é forte nem inverno e nem mesmo os ventos que vem do leste são capazes derrube-la.
Especialmente naquele inverno um dos meninos estava morando como agregado na casa do merceeiro. Isto garantia o seu sustento e principalmente uma boca a menos pra alimentar em casa. O menino era sensível de saúde e de temperamento, mas era muito esperto e vivaz. Trabalhava bem e não causava problemas.
Mas sabe-se lá por que ironia de Deus a necessidade é a mãe da oportunidade. Eis que travam discussão a mulher e o merceeiro seu marido.
- Homem joga fora estas capas de cação seco isto esta fedendo que é uma desgraça por certo está estragado e ninguém mais há de querer comprar esta porcaria.
- Mulher parece que perdeste a noção. Vou eu começar a jogar os produtos velhos fora e logo vou à falência. Se a coisa está tão ruim assim, faz o seguinte em vez de jogar fora você prepara isso pra gente comer.
- E tu achas que eu vou comer essa porcaria fedendo a urina. Querias vender a alto preço, não conseguiu. Foi ganancioso e agora perdeu tudo. Eu não vou comer, tu não vais vender. O melhor a fazer é jogar fora.
- Está bem mulher farei o que você disse. – Passou a mão pelos cabelos. Olhou para a pilha de cação seco. Realmente a esposa estava certa aquilo fedia muito, mas mesmo assim cortava-lhe o coração ter que jogar tudo aquilo fora. Devia ser umas quatro da tarde. Matutou consigo que seria melhor se livrar daquilo antes que o movimento aumentasse.
- Pedro corre aqui.
O garoto que trabalhava nos fundos do estabelecimento não demorou a chegar. O merceeiro sem demora ordenou-lhe que pegasse um carrinho de mão enchesse-o com o peixe e fosse jogá-lo ao mar, pois assim os siris dariam conta daquilo e ele não teria que responder nada a ninguém e nem faria sujeira próximo a sua casa.
Enquanto empurrava o carrinho em direção a praia, Pedro tentava entender o que estaria acontecendo. Sabia que o seu patrão tinha dinheiro, mas sabia também que ele era avarento. Alguma coisa estava errada. Jogar comida fora era pecado. Ele tinha aprendido isso em casa. Ficou em dúvida. E teve medo de ao obedecer ao patrão estar condenando sua alma às labaredas do inferno. Escondeu o carrinho dentro do mato e saiu correndo em direção a casa da sua família. Encontrou a mãe na cozinha passando um café. Contou-lhe toda a história e pediu-lhe sua opinião.
- Não meu filho. Eu acho que não é pecado jogar fora a comida estragada.
O menino agradeceu e abraçou a mãe. Quando já estava saindo, seu pai que tudo ouvira em silêncio disse-lhe assim.
- Tu vais queimar nas profundezas do inferno se jogar aquele peixe fora. – falou assim não por que acreditasse no inferno ou se preocupasse com a alma do filho. Pensava simplesmente em auferir lucro com o caso. – Desde quando peixe seco vai estragar.
- Mas o que eu faço? Eu não quero ir pro inferno.
- Mas Jango! Ele não pode levar de volta, pois o peixe já está fedendo e não mais será vendido. E agora não pode jogar no mar, então o que ele vai fazer?
- Filho eu vou contigo trago esses peixes pra casa. Assim você alegra o seu patrão, não se prejudica e ainda teremos alguns peixes.
E desta forma agiram.
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Naquela noite Jango ficou lavando os peixes a fim de retirar-lhes o terrível cheiro de urina que estava impregnado. Sabia que se os lava-se corretamente e conseguisse uns poucos dias de sol eles ficariam bons de novo. Pensava consigo como as pessoas podiam ser ignorantes. Onde já se viu peixe seco estragar. Era muita frescura desse povo. Só por que estava cheirando mal. Tanta gente passando fome e esse pessoal jogando comida fora. Isso até chega a ser pecado. Ficou tratando do peixe e pensando o que haveria de fazer com tudo aquilo. Com certeza poderiam comê-lo, mas isso não resolveria o problema de falta de dinheiro e além do mais ninguém pode viver comendo somente peixe salgado, havia o açúcar, o sal e o café e tudo isso custava dinheiro. Eles não precisavam de peixe, precisavam de dinheiro e rápido. Ele iria vender aqueles peixes nem que tivesse que pegar a canoa e ir a remo a Joinville, mas ele não iria passar o inverno todo comendo cação seco. Aquilo não era condizente com seus ancestrais. Ele era descendente de ricos fazendeiros. Donos de escravos e de terras. Tinha uma dignidade a zelar. Talvez hoje sua situação não fosse das melhores, mas com certeza em breve ele reconquistaria a glória que a família um dia perdera por causa daquela estúpida lei áurea. Amaldiçoou a princesa Isabel. Sabia que já era pra estar rico se não tivesse sido roubado pelo seu próprio irmão. Quando pensava no engenho de farinha que tinham montados juntos e em como fora atraiçoado pelo seu próprio sangue. Pensava nos peixes e depois voltava a amaldiçoar o dia em que amassara banana para alimentar o irmão mais moço que ia crescer com o único propósito de apunhalá-lo pelas costas.
Seus pensamentos ficaram vagando sobre esses temas até que terminou o serviço, tomou um banho e foi dormir.
O tempo passou, o peixe secou novamente ao sol e o cheiro nauseabundo abandonou-o sem deixar nenhum sinal de sua existência. Então, no dia seguinte a conclusão do serviço de secagem, antes que o sol nascesse Jango carregou o carro de boi com as capas de cação e partiu em direção oposta a mercearia de onde eles eram provenientes. Passou o dia percorrendo as mercearias e vendas em busca de alguém que lhe comprasse a mercadoria. Nada conseguiu. Pela estrada, ele cabisbaixo, cansado e sujo, logo atrás o boi e a carroça. O boi velho, feito em pele e osso. Parecia que ia se desmontar a qualquer momento. O rangido da carroça uma lamentação. Um choro sem fim fazendo a trilha sonora daquele dia perdido. Ninguém fez oferta que pudesse ser aceita. Por fim cansou-se e voltou pra casa.
Naquela noite foi dormir com o problema dos peixes martelando sua cabeça. Teve sono agitado e cheio de pesadelos. Isso fez com que acordasse muito cedo. Ainda era noite e já estava vestido, calçado e com uma faca na cinta, como alias em todos os dias de sua vida adulta. Saiu sem avisar ninguém. Desta vez foi na direção contrária a do dia anterior. Na escuridão que precede o alvorecer iam pela estrada ele, os peixes, o boi, a carroça e o lamento.
Tudo que conseguiram foi mais um dia de caminhada, cansaço, negativas e lamentos. Mais um dia se passara e nada de resultados.
Então movido pelo desalento e pela total certeza do fracasso dirigiu-se no terceiro dia a mercearia que restara ao seu alcance. Justamente aquela que havia jogado os peixes fora. Tinha medo de que os peixes fossem reconhecidos e ele acusado de roubo ou coisa parecida. Por que quando as pessoas querem fazer o mal elas nem precisam de um motivo racional para fazer uma acusação e conturbar a vida de alguém.
Caminhou pela estrada poeirenta, só ele o boi e frio. O gemido da carroça remoendo suas idéias. Tentou criar coragem. Tratou de pensar nos ancestrais e no orgulho familiar. Estufou o peito, ergueu a cabeça e forçou um meio sorriso. Arrumou a roupa o melhor que pode. Respirou fundo e entrou na mercearia.
- Boa tarde
- Tarde Jango. Como vão as coisas?
- Vão como Deus manda. Nem muito bom nem muito ruim.
- Eu sei. Eu sei.
- Frio de mais.
- também acho. E tampem acho que você não veio aqui discutir o tempo. Estou certo?
- Tá certo sim. Vim fazer negócios. Vem comigo até ali fora. Quero te mostrar uma coisa.
Foram até o carro de boi onde Jango pôs-se a louvar as qualidades do seu cação salgado e contou às agruras que passou para capturar aquele lote de peixes. Não esqueceu de pintar o quadro de fome e dificuldades que a família estava passando. A principio o comerciante estava relutante. Não queria adquirir um produto que fosse apenas mais um estorvo em sua loja. Mas com o tempo foi deixando convenser-se de que o negócio não poderia ser assim tão ruim.
- Façamos o negócio dessa forma então. Do preço que você me pediu eu desconto o que você me deve e o restante eu pago em duas vezes, uma agora e outra no mês que vem. O que você acha da proposta?
Jango inclinou a cabeça, tirou o chapéu. Pensou rápido e aceitou antes que a oferta fosse retirada.
- Tá certo então. Vamos entrar e fazer as contas pra ver quanto isso vai dar.
Contas feitas, as parcelas definidas. O dinheiro entregue nas mãos de Jango, que segurou avidamente a notas. Enfiou tudo no bolso e sentiu-se subitamente mais feliz, mais confiante e orgulhoso.
- Um brinde! E por conta da casa. - Cachaça branquinha feita em alambique das vizinhanças. Desceu gostosa, esquentando o corpo.
- A segunda eu pago. - E papo vai papo vem. Cachaça vem e cachaça vem. A alegria subindo a cabeça e com ela vai junto o orgulho. O tempo foi passando e aos poucos o dinheiro foi escorrendo goela abaixo. No fim restou apenas um homem bêbado, voltando pra casa deitado num carro de boi e sem dinheiro algum. No rosto um sorriso, na mente a certeza de ser mais esperto que seus conterrâneos. Entorpecido e feliz. Convencia-se de que era melhor que todos eles. Não se preocupou com o dinheiro gasto e nem com o comeriam a noite. Cheio de cachaça nos cornos foi pra casa embalado em sonhos de grandeza.
No mês seguinte a esposa encarregou-se de recolher o resto do dinheiro.

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