sexta-feira, dezembro 08, 2006

Uma história de natal

Era a noite de véspera de natal. Mas Silvio não tinha família. Morava sozinho. Os poucos amigos que tinha ou estavam viajando ou estavam com os parentes. Voltava do trabalho. Passo lento. Os ombros caídos. Os cabelos presos num rabo de cavalo oscilavam no ritmo de seus passos. A camisa aberta e a bermuda não eram leves o suficiente pra refrescá-lo. O natal seria quente. Muito quente. E ele sentia isso na pele. Branco demais, magro de mais. O nariz levemente aquilino, os olhos verdes, barba rala e um sorriso amistoso. Não tinha maldade no coração. E isso o levava a cometer grandes idiotices e um sem número de coisas estúpidas pra si mesmo. Mas mesmo depois de passar por maus momentos ele sempre voltava à ativa com um sorriso nos lábios e uma nova carga de esperança na vida.

A avenida a sua frente estava deserta. Pensou o que faria com o brinde de natal que recebera da empresa. Cidra e panetonne. O primeiro ia morrer nessa mesma noite. Já o segundo, pensava em jogá-lo fora, mas os dias em que passara fome ensinaram-lhe que não se devia desperdiçar comida. Percorria seu caminho concentrado nesse problema quando ouve uma voz.

- Moço. Oh! Moço tem um trocadinho pra me dá? – era um menino mirrado, cara suja, roupa suja, oito, talvez dez anos. Um mulatinho que de branco só tinha os dentes e uma parte dos olhos.

- Tenho não garoto.

- Moço não tem nada mesmo? Eu tô com muita fome. – reiterou o pedido forçando um olhar de cachorro pidão.

O pedido mexeu com Silvio e tocou algumas lembranças que ele preferia ignorar. Mas ele não conseguia.

- Tu não tem casa guri? Cadê teu pai cadê tua mãe?

- O pai ta preso. E minha mãe ta com um cara que só quer saber de me bater. Então eu fugi de casa.

- E tu mora aonde?

- Eu durmo por ai.

Deve ter sido a mistura de espírito de natal, solidão e os seus traumas pessoais o que apertou o coração dele diante daquele menino. Sempre fora emotivo. Principalmente quando o caso envolvia crianças. Esqueceu que estava exausto e que estava indo pra casa. Olhou pro garoto e teve certeza de que iria fazer a coisa certa. Afinal era uma época de amor e fraternidade.

- Quer comer?

- Quero.

Sentaram-se no meio fio. Silvio abriu a caixa de panetonne e rasgou um pedaço pro guri. O pequeno devorava a comida com uma vontade que dava até medo. Silvio forçava a rolha da garrafa. A criança estava tão entretida com seu alimento que quando a rolha saltou com seu estouro característico o menino de um pulo pôs-se de pé. E teria saído correndo se não tivesse sido chamado de volta.

Ficaram ali. Em silêncio. Um bebia. O outro comia. Enquanto saboreava a espumante começou a pensar o que seria daquele menino se passasse o resto da sua infância sozinho. Iria pras drogas e pra marginalidade. Morreria cedo. Uma morte triste e estúpida. Talvez uma doença ou overdose ou até mesmo um tiro. Isso não era coisa muito rara de acontecer na cidade. Sempre tivera muito jeito com crianças. Elas sempre o adoravam. Talvez por que fosse apenas uma criança grande. A bebida fazia efeito muito rápido nele. Estimulava sua alegria e sua bondade. E assim tomado por esses bons sentimentos tomou uma atitude.

- Onde tu vai dormir hoje?

- Por ai. – disse o menino num tom indiferente.

- Quer ir pra casa comigo? Não tenho luxo, mas pelo menos um teto pra se proteger e um sofá pra dormir você vai ter.

O menino ficou em silêncio olhando para aquele adulto estranho. Olhou pro chão. Olhou pro céu. Apesar do calor e tempo abafado o céu estava nublado. Prenuncio de chuva com certeza.

- E tem comida lá?

- Tem sim garoto. Tem bastante comida pra nós dois.

- Ta bom então. Assim eu quero.

- Então vamos.

Caminharam juntos por um bom tempo. Silvio não se estressava com as muitas perguntas que o garoto fazia. E respondia a todas com muita atenção. Assim nem viram o tempo passar. Chegaram ao barraco e foram logo preparando uma janta. O menino foi levado ao banho. Jantaram. Assistiram televisão. Riram. Quando deu meia-noite trocaram abraços e desejaram feliz natal um ao outro.

- Sabe moço, esse foi o primeiro natal que eu tive de verdade.

- Ah! Garoto se depender de mim você vai ter muitos e muitos natais. E ainda melhores que esses. Vem cá me dar um abraço.

- Obrigado moço.

Silvio sentiu aquele corpo pequeno em seus braços. Tão magro. Tão frágil. Sentiu vontade de protegê-lo e alimentá-lo. Aquele pedaço de gente teria um carinho que ele vinha guardando há muito tempo e não tinha a quem dá-lo. Os olhos encheram-se d’água. Mas homem que é homem não chora então tratou de enxugá-los sem que o menino o visse.

Depois disso preparam o sofá com lençóis, travesseiro e cobertor. Desejaram boa noite e foi cada um pro seu leito. Na cama a certeza de que estava fazendo a coisa certa o reconfortava. Deus estava vendo. Não fazia aquilo por interesse mais sabia que Deus sempre protegia as pessoas que faziam o bem ao seu próximo. Embalado por essa certeza e a de que não viveria mais solitário dormiu com um sorriso nos lábios.

Na manhã de natal acordou por volta das 11h00min. Não achou o menino, nem o tênis, nem a carteira e nem o DVD. A porta da casa estava aberta e novamente ele estava sozinho no mundo.

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