terça-feira, maio 25, 2010

Carta, família e caneta

- Então garoto pra quem é a carta?
- É pra minha mãe. Escreve aí moço, mãe eu até queria escrever bonito...
...
Sozinha na penumbra da cozinha ela apertava a carta contra o peito. As lágrimas surgiam lentas e discretas. Depois de um certo tempo elas ficam mais escassas e talvez por isso mesmo mais valiosas. Entre um soluço e outro enxugava as gotas com as costas da mão. Estava sentada há muito tempo. Tanto tempo que o jantar já deveria estar pronto e a mesa posta a espera do filho, mas nada tinha sido feito ainda. Não que a refeição houvesse diminuído de importância, o que ocorria é que sua mente agora ocupava-se unicamente com duas coisas:
Saulo seu filho e dinheiro. Tanto dinheiro que ela não via meios de obtê-lo.
Não ouviu os passos no quintal e só voltou ao mundo real quando a luz foi acesa.
- Ô  mãe! Chorando no escuro de novo. - largou a sacola numa cadeira e foi abraçar a mãe. As respostas e as perguntas podiam esperar. Aconchegou a cabeça dela sobre o peito e afagou-lhe os cabelos brancos. Quando se acalmou sentaram-se frente-a-frente de mãos dadas. - São notícias do Saulo mãe? O que aconteceu?
Ela tentava falar, mas a voz perdia-se em algum lugar e tudo que pode fazer foi entregar a carta toda amassada e borrada de lágrimas.
"Mãe eu até queria saber escrever bonito e dar boas notícias de mim. Mas não foi iço que Deus quis pra mim.
Estou preso no presídio... desde o dia... Acho que a sinhora já tá sabendo diço.Porque me me prenderam na rua confundido com um ladrão de bicicleta.
Mãe não tenho mais ninguem nesse mundo pra mi acudi nessa hora. Por iço escrevi essa carta pra sinhora.
Quando eu era pequeno a sinhora sempre me dizia que a vida da gente não tem preço. Mas aqui dentro tem. e o preço da minha é 500 real. Se eu não pagar até domingo o dono da cela disse que ia mandar me matar.
Mãe não me deixa morrer aqui. Faz o que puder mais arranja esse dinheiro pra mim.
Mãe se te fiz sofrer peço seu perdão.
Com saudades Saulo."
- Então o que a senhora vai fazer?
- Eu não sei meu filho. Não tenho esse dinheiro todo. Você tem que me ajudar.
- Nem que eu tivesse essa grana eu te dava.
- Ele é seu irmão. Você não pode abandonar ele.
- Eu? Quem fugiu de casa foi ele. E quer saber, lugar de maconheiro é na cadeia mesmo.
- Não diga essas coisa de Saulo que ele não merece.
- Lá vai a senhora de novo defender aquele vagabundo. Se o moleque tá lá é porque fez por onde, agora ele que se vire. Se é que o que ele escreveu é verdade. Mãe isso é só mais um golpe dele pra arrancar teu dinheiro de novo. Abre os olhos!
- Meu Deus! E eu rezo tanto, toda noite pra Deus abrir teus olhos filho. Pra que tanto ódio nesse coração. O que foi que teu irmão te fez pra merecer isso?
- Quem disse que odeio meu irmão? So acho que  cada um colhe o que planta. Ele roubou, merece cadeia.
- Então você prefere ver o seu irmão morto do que lhe dar dinheiro.
- Chega disso.  O tempo todo defendendo aquele safado. Tô de saco cheio. quer saber, é melhor que ele morra mesmo, quem sabe assim ele deixa a gente em paz. - saiu para o seu quarto e trancou-se batendo a porta.
Ela queria chorar, mas seu olhos estavam cansados.
...
Tarde da noite. Muitos dormiam, alguns fingiam, ele continuava acordado. Tempo demais sem dormir. Os olhos pesados. As imagens embaçam. Esfrega os olhos. Bate no rosto. A cabeça inclina-se lentamente . Cai. Acorda. Ergue de novo. De costas pra parede fria observa atento qualquer movimento, barulho ou atividade dentro da cela. Duas noites sem dormir. Até quando iria aguentar? Não sabia e agora tinha quase certeza de que o dinheiro não viria.Tudo bem, não que estivesse realmente bem, mas depois de tudo que fizera sua mãe sofrer era querer demais que ela aparecesse com todo aquele dinheiro pra salvar a sua vida. Mesmo assim não iria desistir. Ia lutar até o fim. Não ia se entregar. Ia conseg...
Uma coisa no rosto! As mãos presas no chão. Pernas imobilizadas. Quis gritar. Ninguém ouviu. Debatendo-se Ia se soltar. Dor. Uma porrada na barriga. Não conseguia fugir. Medo. Apoiaram alguma coisa em seu peito. Ar. Dor. Peito ferido. Dor. Ar. Ar. Ar...
Rostos assustados, sombrios, indiferentes, satisfeitos. A escuridão acolheu a todos. Até mesmo àquele inerte sobre a poça de sangue.
Na manhã seguinte nada se sabe sobre o crime. Apesar da caneta cravada no peito ninguém quis assinar a obra.
...
Ao repórter que lhe perguntava sobre a morte do filho respondeu:
- Veja só seu moço Ontem tentei visitar meu filho. Não deixaram. Hoje me dizem que já posso enterrar o corpo.

Texto escrito a partir do blogue Once upon time e seu desafio:
Frase: "pra quem é a carta?"
Escreva uma história, um conto ou até mesmo uma fábula (nada de textos argumentativos) que contém a frase acima.

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6 comentários:

  1. Infelizmente é o prato do dia, cada vez mais jovens e menos jovens escolhem esses caminhos que levam a dor a demasiadas familias...e cada vez mais ficam assim sem viver nem deixando outros viver como se todos tivessem de pagar pelo crime de um, mas...é a vida que temos.
    aquele abraço da laura

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  2. Bahh...belíssimo conto... fui de um misto de emoção com a mãe, para revolta com o irmão e angustia com o Saulo...

    realmente, como diz a Laura ali... é lamentável que cada vez mais a gente ve isso acontecer... seja aqui ou em qquer lugar do mundo...

    mas concordo com o que o irmão disse... cada um colhe o q planta...

    enfim... o tema é polêmico e teu conto foi fantástico...

    ps.: sempre leio teus textos, assim como os da Lu... hoje resolvi comentar tbm...

    Abraço do Mr.!

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  3. Laura talvez essa história fosse menos triste se não fosse baseada em fatos reais.
    Um abraço moça.

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Gostei do conto! Assim como o Mr. Gomelli, senti a dor da mãe, a revolta do irmão e a angústia do Saulo. Sentimentos tristes... Infelizmente, cada um colhe mesmo o que planta. Mas creio que quem deseja mudar o rumo da sua vida, merece uma chance.

    Como disse a Laura, é triste constatar que muitos jovens estão indo para o caminho que causa muito sofrimento a si próprios e aos outros. Parecem que não sabem ou não querem viver bem. O seu conto reflete as muitas realidades que existem por aí. O que gostei bastante foram a sua criatividade ao inventar esta história e a descrição que você faz do momento vivido pelos personagens. Um abraço!

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  6. Gomelli que bom que tenhas gostado. Apesar de curto acho que o texto traz um problema comum a muitas pessoas.
    Um abraço e volte sempre.

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