
Noite de quarta-feira. Caminho sozinho pelas ruas. Quase todos estão em suas casas aquecendo o corpo e congelando as mentes em frente a televisão. A caminhada e as taças de vinho que tomei ajudam a esquentar. No bolso direito do sobretudo levo minha velha e cega faca. Companheira do dia a dia e principalmente das caminhadas noturnas. O tempo está frio. Oficialmente o inverno começa daqui a dois dias. Mas não é o que dizem as pontas dos meus dedos. Depois de 45 cinco minutos de caminhada chego ao meu destino.
Uma amiga da internet me deu a dica. Um bar com música e poesia ao vivo. Poesia nunca foi a minha praia, mesmo assim é uma chance de mudar de ares. Afinal pedra que rola não cria limo. O bar tem um aspecto bacana com aquecedores e lugares aconchegantes. Escolho uma mesa, peço uma água com gás e relaxo apreciando a música. Ao redor o tipo de gente cult da faculdade. Cabelos estranhos e aquele ar de intelectual. A música é boa. Sou um estranho em terra estranha. Ninguém se aproxima, muito menos tento estabelecer contato. O tempo passa e aparecem os poetas e de tudo que ouço se salva apenas a performance e a seleção de poemas feita por um escritor local,
Maicon Tenfen, dois do
Augusto dos Anjos e um do
Vinícius de Morais.
Fiquei ali por umas duas horas entre músicas poesias e tudo o que posso dizer é que as músicas próprias apresentadas pelos blumenauenses tocaram-me muito mais que as poesias criadas por eles.
No retorno ao hotel minha caminhada foi interrompida cinco vezes por drogados que pediam uma ajuda pra comer, pra pagar o ônibus, pra comprar remédios e todas essas mentiras que eles contam quando estão na fissura.
Abaixo estão os poemas que me agradaram.
De Augusto dos Anjos:
Versos íntimosVês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te a lama que te espera!
O Homem que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera
Toma um fósforo, acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro.
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa ainda pena a tua chaga
Apedreja essa mão vil que te afaga.
Escarra nessa boca de que beija!
Psicologia de um vencidoEu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
De Vinícius de Morais
Soneto da fidelidade“De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.”