Noite chuvosa. Mais que chuvosa, parecia que as Cataratas do Iguaçu estavam descendo das nuvens. Ainda para completar, ventava muito. E o vento sul entrava nas frestas da parede, trazendo algumas gotas de chuva e muito frio.
Tião em seu casulo queria apenas dormir. Se o dilúvio acontecesse ele ficaria boiando em sua cama quentinha por quarenta dias e quarenta noites, até que aparecesse alguma pomba, ou sabe lá qual pássaro com um ramo de oliveira (era oliveira?) em seu bico anunciando terra firme.
Fora um dia terrível. O patrão cismou de encrencar com ele. Justo naquela sexta-feira nublada. Ter que trabalhar no sábado. Era só o que faltava. Tirava os sábados para jogar seu dominózinho do bar do Melo até às três da tarde. Sempre com muita gelada e tira gosto a vontade. Depois ia pra casa tirar um ronco até às sete da noite e depois ficava vendo tevê até de madrugada.
_ Diabos! Zeca cismou em ganir uma hora dessas! O que esse desgraçado quer? Tem comida, tem água, tem uma casinha que não tem tantas goteiras quanto a minha, e ainda fica ganindo?!
Onde a vontade e a coragem de sair debaixo das cobertas para ver o que o cachorro queria? Mas a peste não parava de latir e de ganir e com esse barulho todo não consegui pegar no sono. E ainda por cima amanhã tinha que acordar cedo pra trabalhar. Desgraça!
Ficava torcendo para o cachorro parar de ganir, dava umas batidinhas na parede e sussurava pela fresta _Vai dormir Zeca! Mas qual, aí mesmo que o vira-latas gania.
_Vai lá ver o que é Tião. Ele pode estar enrolado na corrente.
Valdete também tava acordada? Aconchegou-se a mulher, mas um cotovelaço esfriou suas vontades.
_ Sai Tião. Vai logo ver o que aquele bicho quer!
_ Diacho!
Levantou-se tropeçando nas panelas que estavam no chão por conta das milhares de goteiras. Manteve o equilíbrio para não escorregar no chão frio e úmido.Acendeu a luz da rua, esperou um pouquinho pra ver se Zeca parava de ganir mas não teve jeito. Tentou abrir a porta, mas qual, ela estava emperrada por conta daquela chuvarada. Deve ter estufado com tanto água. Forçou, forçou mas não conseguiu abrir. Sussurrou alguns palavrões e encaminhou-se à janela.
Abriu a janela e pode ver Zeca, todo encharcado, enrolado no cano da antena da tevê. Bicho burro, pensou. Como pôde se enrolar daquele jeito.
Zeca quando o viu começou a se agitar, quase derrubando a antena. Tião só tinha um jeito, pular a janela.
Chuva, vento, frio, madrugada, cansaço, tédio, raiva por ter que trabalhar no sábado, o cachorro perturbando. Bem que nunca quis aquele pulguento. Sua cunhada que o trouxe e convenceu sua esposa a tomar conta dele.
Tião apoiou-se na janela, lembrou-se que estava descalço, mas já era tarde, depois lavaria os pés, pulou em cima de uma madeira que estava totalmente ensaboada com a chuva, não pôde equilibrar-se e se estatelou de costas no chão. Percebeu que não era apenas o sabão da chuva, mas, também, o cocô do Zeca.
_ Cão miserável!
Tião levantou-se totalmente sujo, dolorido e encharcado. Zeca a essas alturas estava cabisbaixo e silencioso, amedrontado, pois seu instinto já lhe dizia que iria sobrar pra ele. Até porque ele fora o protagonista de toda aquela confusão.
O primeiro pontapé acertou as costelas do cão que soltou apenas um pequeno gemido de dor, o segundo acertou-lhe a cabeça, o que fez doer mais o pé do Tião do que a parte acertada do cachorro, até porque nosso herói estava descalço. Tião conseguiu alcançar a corrente e soltou o cachorro que desabaladamente pulou a cerca e desapareceu.
_Vai filho de uma égua, desaparece e não volta mais! Gritou Tião.
Voltou para a janela e assustou-se vendo Valdete lhe olhando com uma cara de ódio e repreensão.
_ Desenrolei aquele desgraçado e ele fugiu. Foi o que pode dizer entre gaguejos sem graça.
_ Você é um desalmado, bater em um bichinho inocente e indefeso. Seu ignorante, grosso. Agora vais dormir aí na casa do Zeca para aprender. Antes que Tião pudesse articular qualquer palavra, Valdete bateu-lhe a janela na cara, quase lhe atorando os dedos.
Ainda protestou e bateu na janela, pedindo que ela abrisse, mas como viu que seria impossível e a vizinhança já começava a reclamar, não teve escolha senão se encolher na casa do Zeca, e passou a noite ali, molhado de corpo alma e coração, com cheiro de cocô e de vez em quando soltando um ganido que não sabia se era de frio ou de indignação.
Hélio Cabral Filho
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