domingo, dezembro 24, 2006

Bingo

É! É isso aí!
Eu tô no bingo. Quem foi que disse que eu não gosto de viver perigosamente. Aventura e emoção. Vou me entregar aos riscos da jogatina. Ainda mais com todo esse dinheiro no bolso. Não saio daqui enquanto não torrar todos os cinco contos que eu trouxe.
Está bem! Vou falar a verdade. Eu não estou nem aí pro jogo. Arranjei uns cupons de desconto e por três pilas, encho a pança de pizza, até sair rolando de tão gordo e inchado. Se eu ganhar alguma coisa, ótimo se não. Bom pelo menos garanti um rango.
Não dá pra dizer que o lugar é agradável, ou que o ambiente é saudável, na verdade é bem o contrário. O ar viciado do ar condicionado, a iluminação, não precária, mas que deixa as pessoas, parecendo zumbis, com a pele acinzentada e morta. E por mais que eu mude de lugar, a área de fumantes é sempre do meu lado.
Os atendentes. Sempre bem vestidos e muito prestativos. Sempre prontos para oferecer-lhe uma cartela. Uma, e mais uma, e outra, e mais outra enquanto você tiver dinheiro, eles estarão ao seu redor. Como corvos atras da carniça. Mas mesmo assim eles sorriem o tempo todo. E é nessas horas que eles me assustam. Não que fiquem com cara de bravos, não é isso. O problema é que eles ficam com aqueles olhares vazios, de corpos ocos, sem alma. Enquanto eles vagam pelo salão feito açoitadores em uma lavoura escrava. Lá no alto fica a líder, a supervisora, bruxa-mor. Os cabelos loiros, lisos, belos não escondem os olhos maldosos, encravados naquele lindo rosto. É ela a responsável pelo vôo dos corvos. Sempre lá. Os olhos correndo, prum lado, pro outro. Sempre pronta para punir a ave que não voa o bastante, ou a ave que não morde o suficiente.
Eles estão lá correndo pra lá e pra cá, batendo cabeças. Empurrando todas as cartelas que podem, e as que não podem também. Voem pássaros de mau agouro. Enquanto as aves voam, eu como. E enquanto como eles jogam.
Tenho mais farelo de pizza na mesa do que cartelas jogadas. Se todos os clientes fossem iguais a mim, eles fechariam o bingo e abririam um rodízio. Enquanto como escrevo e observo a fauna local. Exceto as meninas que trabalham aqui, o que temos é uma verdadeira floresta de celulite e varizes. Quanto as dentaduras, nem vou me dar ao trabalho de discuti-las. Algumas das “mulheres” daqui tem mais bigode do que eu!
Arg! Que nojo!
Não entendo! Realmente não entendo. Que fascinação os velhos tem pelo bingo. Quase todo mundo aqui, pegou carona com Noé. Quem sabe o fato de ficar isolado do mundo e da vida, alivia a dor de ficar velho e saber que a cada dia se está morrendo mais um pouco. Eles entram e os pássaros já os atendem pelos nomes. Ficam sentados, sozinhos, fumando, esperando o jogo começar, e então desligam-se do mundo. Esquecem tudo e se entregam ao papel numerado. E se eles não ganham dessa vez, não tem problema. Eles não vão a lugar nenhum mesmo. Já aceitaram a morte. Entregaram a alma. E o corpo? Este eles entregam calmamente. Dia-a-dia entregam um pouco. Os olhos perdendo o brilho, a pele perdendo o viço. E as mãos? Agora só conseguem firmar a caneta. A voz? Embargada pra qualquer palavra que não comece com ”b” e termine com “ingo”. É, pelo menos os velhos encontraram um jeito de se desligar da vida e do sofrimento. Enquanto eu continuo no ataque, agora é aquela quatro queijos, que morre.
Enquanto mastigo, fico olhando pras aves. Nem sempre eu pensei neles como seres alados. Teve uma época que eu pensava que eram todos alienígenas, eles e alguns dos idosos, que já estão no bingo há tanto tempo que parecem fazer parte da mobília. Isso aí! Aliens. Tipo invasores de corpos. Tudo bem que essa impressão sempre vinha acompanhada de um mórbido pesadelo de que quando eu acabava de encher o pandulho, me levantava e caminhava em direção a saída, o porteiro que fica do lado de fora do bingo, fecha a porta e fica me observando pela pequena janela de vidro que há na porta. Eu tento abrir a porta na marra, enquanto puxo a maçaneta, eu vejo aquele rosto, inexpressivo, mudar-se em um sorriso maléfico e um brilho ensandecido surge em seu olhar. Nisto eu olho pra trás e vejo-me cercado por vários velhinhos e velhinhas, eles trazem bengalas, bolsas, guarda-chuvas e até mesmo tamancos. Eles trazem essas coisas, suas armas. Todos eles tem o mesmo sorriso sádico no olhar. Não dizem nada. Apenas se aproximam. Saio correndo, na direção que acho que, estão mais fracos e que conseguirei passar. Empurro um, escoro outro, eles vão caindo. Estou passando. Aí! Não estou mais. Um velho agarrou meu braço. Começo a jogar o corpo pra traz, com toda força. O maldito velho não larga. Eu continuo me afastando. Passo a socar e a chutar o velho. Enfim ele me larga. Saio correndo pelo salão. Corro em direção a cozinha. Sempre me desviando dos corvos. Eles são mais rápidos que os guarda-costas do Moisés. Quando chego na cozinha. Me lança pela porta e descubro que a cozinha está entulhada de pássaros. Não há pra onde fugir. Corro pro salão. Pronto. Estou cercado. Ainda consigo agarrar um troféu desses que eles distribuem no bingo. Desesperado. Começo a gritar:
Venham! Vem seus filhos da puta. Cês querem me pegar. Vão se foder.
Enquanto eu berrava e cuspia, minhas mãos encharcadas de suor, seguravam o metal frio do troféu.
A respiração ofegante, o suor caindo nos olhos. A pulsação quase estourando. Então eles aumentam a música ambiente. Enquanto New York, New York explode nos alto-falantes, eles começam o seu ataque.
O primeiro que avança, eu derrubo com uma trofeusada certeira no meio dos cornos, o segundo se atira sobre mim, eu desvio e sento o troféu nas costas dele. Enfim eles começam a se atirar, todos juntos, sobre mim. Eu chuto, eu soco, eles me agarram, me batem, uma velha morde minha perna, eu grito, me debato e sou afogado por aquele monte de mãos, bengalas, tamancos e guarda-chuvas.
No outro dia. Lá estou eu, um puta olho roxo, alguns curativos espalhados pelo corpo, a pele acinzentada, os olhos vazios e um sorriso idiota no rosto. E assim vai ser todos os dias.
Convenhamos, passar a eternidade no bingo é realmente um pesadelo assustador.
Mas deixemos de conversa. Minha calça e minha barriga chegaram a conclusão de que eu já comi demais. E a barriga já disse que se a calça continuasse a pressioná-la, ela ia arrebentar com tudo, botão, fechecler, cinto, cós gavião, ia fazer o diabo.
Então nessas condições nada mais me resta senão voltar para casa.
Ah! É claro que eu vou de bicicleta. Vocês sabem como é, eu me preocupo com o meu físico.

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